Guedes ameaça sair do Mercosul, e analistas alertam que até preço do pãozinho seria afetado

Abitrigo
20/08/2019

Especialistas demonstraram preocupação com a possibilidade de o Brasil deixar o Mercosul caso a oposição vença a eleição presidencial da Argentina, em outubro, e mude a política de abertura comercial do presidente Mauricio Macri.

A ameaça de abandonar o bloco comercial foi feita na quinta-feira pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, durante evento com investidores na capital paulista. Nesta sexta-feira, o presidente Jair Bolsonaro avalizou a fala de seu ministro ao conversar com jornalistas na entrada do Palácio da Alvorada, em Brasília.

Uma hipotética saída do Mercosul, segundo especialistas, mancharia a imagem externa do país e resultaria em percalços sentidos no dia a dia dos brasileiros – a começar pelo preço do pãozinho, que ficaria mais caro com taxações extras sobre as importações de matéria-prima da Argentina.

O motivo: o Brasil importa 50% do trigo que consome, dos quais 86% vêm da Argentina. Hoje, a matéria-prima é isenta de tarifas de importação.

– Se o Brasil sair do Mercosul, pagaremos algum tipo de alíquota para essa importação. O preço do pãozinho vai aumentar – diz Rubens Barbosa, presidente da Associação Brasileira da Indústria do Trigo (Abitrigo).

Para Barbosa, contudo, analisar o futuro do Mercosul com base no resultado de uma eleição presidencial, que ainda está longe do fim, é um exercício “perigoso”.

No domingo, a candidatura do peronista Alberto Fernández, que tem a ex-presidente Cristina Kirchner como vice, ficou com 47% dos votos nas eleições primárias, uma espécie de prévia da votação de 27 de outubro. A chapa do presidente Maurício Macri, de cunho liberal, ficou com 32% dos votos.

– Não sabemos a política do futuro governo. Mesmo que a oposição ganhe e mude a direção da economia, não vamos ter um abalo forte no comércio. Temos um determinismo geográfico. Brasil e Argentina estarão sempre um ao lado do outro – disse Barbosa.

Welber Barral, sócio da consultoria Barral M Jorge, dedicada ao comércio exterior, avalia que a saída do Brasil do mercado comum com a Argentina “não é algo simples”. De acordo com o especialista, o Mercosul é fruto de 30 anos de negociações e envolve uma integração econômica para além da tarifa comercial comum entre os países membros.

– Numa vitória da oposição, o mais provável é que o governo brasileiro adote uma estratégia de flexibilizar as regras para as tarifas comerciais com países de fora do Mercosul. Atualmente, essas alíquotas são definidas em conjunto entre os quatro países membros (Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai). No passado, o Uruguai já tentou, sem sucesso, mudar essas regras. Como o Brasil é o país com maior peso no bloco, é possível que consiga essa flexibilização – diz Barral.

Parceiro comercial

Guedes também minimizou, na quinta-feira, o efeito para a economia brasileira da atual crise argentina. Segundo ele, “não vai ser nenhum ventinho do Sul” que vai afetar o Brasil. Mas, este ano, com a piora da economia argentina, as exportações nacionais para o país vizinho caíram 40% até junho.

A Argentina é o terceiro maior destino das exportações brasileiras, atrás apenas de China e Estados Unidos. E é um importante comprador de produtos manufaturados e de alto valor agregado do Brasil. São exemplos automóveis, autopeças, tratores e outros. Este ano, as vendas para os argentinos já somam quase US$ 6 bilhões.

—A Argentina é o segundo maior mercado para os calçados brasileiros, atrás apenas dos Estados Unidos. Independente do Mercosul, o país continua sendo um importante parceiro comercial — diz Haroldo Ferreira, presidente executivo da Abicalçados, associação de um dos segmentos que mais exporta ao país vizinho, ao lado do setor automotivo.

Nos sete primeiros meses de 2019, as exportações de calçados para a Argentina somaram US$ 54 milhões, uma queda de 37% sobre o mesmo período do ano passado, em função da crise econômica no país vizinho. Nos últimos anos, a participação das exportações de calçados para a Argentina em relação ao total do setor subiu: passou de 8% em 2014 para 14% em 2018. Por isso, mesmo com os solavancos atuais no país vizinho, Ferreira pondera que o setor calçadista brasileiro já vivenciou crises maiores e deve seguir vendendo para lá.

Queda de até 0,3% do PIB brasileiro

A crise econômica da Argentina, por si só, já tem causado danos para o lado de cá da fronteira. O Alberto ramos, economista-chefe do banco Goldman Sachs, em Nova York, prevê que a economia argentina vá contrair 2% em 2019.

O especialista pondera que o prognóstico pode ser ainda pior a depender da política econômica adotada num governo Fernández que, por ora, é uma incógnita. Como a Argentina é o principal destino de exportações brasileiras de alto valor agregado, como máquinas e insumos industriais, uma contração forte da atividade por lá pode afetar a combalida indústria brasileira, pouco competitiva em relação a de outros mercados.

– Uma contração provável do PIB argentino, de 2% ou mais do que isso, pode reduzir em até 0,3% o crescimento da economia brasileira – diz Ramos, reforçando que os cenários aos dois países ainda são muito incertos diante da incógnita política econômica a ser adotada numa vitória da oposição na Argentina.

Forte ligação

Para líderes empresariais que atuam nos dois países, qualquer mandatário a sentar na cadeira mais poderosa da Casa Rosada em 10 de dezembro, data prevista para a posse do próximo presidente argentino, deverá reconhecer o Brasil como o seu principal parceiro comercial. Por isso, deverá aceitar que o Brasil está num processo de abertura econômica.

– Por causa da forte ligação entre os países, não vejo a Argentina se diferenciando muito do Brasil nesse quesito – diz o argentino Federico Servideo, presidente da Câmara de Comércio Argentino Brasileira (Camarbra)

Ele acredita que se Fernández for eleito presidente, ele deve moderar a visão de esquerda e protecionista após chegar ao poder.

– Provavelmente o candidato Fernández vai entender que os problemas da Argentina não se resolvem com soluções baseadas em ideologias de esquerda, nem fechando fronteiras. Espero que o acordo comercial entre Mercosul e União Europeia não volte à estaca zero – diz Servideo.

Interferência no pleito argentino

Para a espanhola Lourdes Casanova, professora da Universidade Cornell, nos Estados Unidos, e autora do livro “Global Latinas”, de 2009, em que aborda a ascensão de empresas brasileiras, o governo Bolsonaro não deveria usar a ameaça de uma saída do bloco econômico para interferir no pleito argentino.

– Isso só piora ainda mais a imagem externa do Brasil, que vem piorando nos últimos meses – diz.

Federico Servideo, da Camarbra, acredita que o Mercosul não deve servir de barreira à abertura comercial pretendida pelo governo Bolsonaro. A começar porque o candidato Alberto Fernández ainda não foi claro sobre a política comercial a ser adotada caso de fato chegue à Casa Rosada.

Para Servideo, há chance de um retorno dos peronistas ao poder não representar uma repetição da política econômica dos dois mandados de Cristina Kirchner (de 2007 a 2011 e de 2011 a 2015).

No período, os argentinos conviveram com controles na compra e venda de moedas estrangeiras, além de altas tarifas sobre importação, numa tentativa de conter a saída de reservas por parte de investidores desconfiados com a falta de transparência em indicadores, como o da inflação, e com a forte intervenção do Estado na economia.

Fonte: O Globo

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