Na quarentena, assar pão e bolo ganha espaço e aumenta procura por farinha

Abitrigo
07/04/2020

SÃO PAULO – “Minha quarentena se resumiu a: 1. mãos com cheiro de água sanitária; 2. mãos com cheiro de farinha de trigo”, brinca uma postagem recente nas redes sociais. De fato, basta passar alguns minutos na internet para notar a quantidade de imagens de bolos, pães, brownies e afins compartilhadas durante a pandemia do novo coronavírus.

Os motivos para o hábito ganhar força passam pela necessidade de evitar sair na rua, o maior tempo disponível em casa e a possibilidade da culinária se transformar em um hobby. Dentro desse cenário, já há quem relate dificuldades em encontrar farinha de trigo em comércios de São Paulo.

E mais: reportagens de veículos estrangeiros mostram que o fenômeno não é local. “People are baking bread like crazy, and now we’re running out of flour and yeast” (“As pessoas estão assando pão como loucas, e agora estamos sem farinha e fermento”, em tradução livre) é o título de uma matéria do jornal americano Washington Post. Já outro exemplo é do The New York Times, que questionou: “Stress baking more than usual?”

Nas redes sociais, algumas milhares de pessoas compartilham imagens dos seus feitos com hashtags relacionadas à pandemia, como #coronavirusbaking, #isolationbaking, #covidbaking e, até mesmo, #stayhomeandbake (“fique em casa e asse”). Em português, as postagens de bolos, pães e afins ficam em hashtags menos específicas, como #quarentenaprodutiva e #quarentenanacozinha.

A busca por dicas na internet também cresceu. No Google, o interesse de brasileiros por receitas de bolo quase dobrou no fim de março em relação a qualquer outro período de 2019, popularidade que chegou a quadruplicar no caso de pães e brownies. O fenômeno não se repete, contudo, para sobremesas populares: o interesse por receitas de brigadeiro e mousse, por exemplo, está semelhante ao do mesmo período de 2019.

Já há relatos até de quem teve dificuldade para encontrar o produto em mercados e supermercados. Em uma postagem em um grupo de bairro, uma moradora chegou a questionar – em tom de piada – se a farinha de trigo combatia o coronavírus. “Farinha is the new ‘álcool gel’”, comentou. “Bater bolo é uma recomendação de atividade física”, sugeriu outra moradora.

A produtora cultural Aretha Larangeira, de 36 anos, é uma das pessoas que chegaram a ter dificuldade de achar o item. Ela foi a dois estabelecimentos há pouco mais de uma semana, mas não conseguiu farinha de trigo para a esposa, que utiliza o ingrediente no preparo de pães, bolos e biscoitos. “(Era) para uso caseiro mesmo, nada em larga ou média escala”, explica.

A confeiteira Bruna Donatello, de 27 anos, procurou nos sites de três grandes redes de supermercados, mas o item estava indisponível em todos. “Ainda tenho 3 quilos de farinha em casa, porém, quando acabar, vai ficar difícil se eu não encontrar com facilidade. Não dá para ficar indo tão atrás.”

Por causa da pandemia, Bruna decidiu desistir de vender produtos para a Páscoa, mas está usando o tempo extra para se aperfeiçoar. “Tem me distraído bastante, tem sido bem prazeroso. Ocupa o meu tempo e tem sido uma terapia em momentos de ansiedade. O ruim é não poder compartilhar (a comida) com as outras pessoas.”

Ela conta que amigos a têm procurado para pedir dicas e receitas. “Postei esses dias nos stories (do Instagram) a foto do bolo de cenoura e vieram pessoas me perguntar como eu fazia pra ficar tão bonito. Uma perguntou como fazia porque ela nunca acertava e sempre solava os bolos. Outra amiga veio me perguntar como fazer calda de bolo.”

Já a bartender Caiane da Costa, de 31 anos, não teve dificuldade para encontrar farinha de trigo de sua marca preferida em um supermercado de uma grande rede, mas o estabelecimento limitava a compra para até três unidades por cliente. Além disso, não conseguiu achar fermento de nenhum tipo. “Fui perguntar para um dos meninos que abastece (as gôndolas) e não tem previsão de chegar.”

“Tenho feito pão, bolo, massa de pizza, tenho feito tudo em casa. Eu adoro fazer essas coisas”, comenta. “Pão comprava pronto sempre. Agora estou fazendo pra não precisar sair. Bolo sim (já costumava assar em casa). Pizza não, sempre comprei, mas estou evitando até pedir delivery.”

Para o pão, usa uma receita de família, ensinada por Dona Nelcy, sua avó. No caso da pizza, as dicas foram retiradas da internet, enquanto bolos são ideias próprias. “Invento novas (receitas), uso o que tem na dispensa ou na geladeira. Estava sem leite, então fiz um bolo de laranja, por exemplo.”

Ela já está em isolamento social há mais de duas semanas e percebe a culinária como uma forma de distração. “Quando vejo, passei a tarde e um pedaço da noite na cozinha. Ajuda a aliviar a mente e a ansiedade.”

O Estado fez pesquisas em alguns sites de grandes redes na tarde de quarta-feira, 1º. No Pão de Açúcar, por exemplo, havia apenas uma marca disponível de farinha de trigo branca tradicional. No Carrefour e no Sonda, era possível comprar o item de duas marcas, enquanto nenhuma variedade estava disponível no Extra.

Além da maior procura, a distribuição do produto chegou a sofrer dificuldades na semana passada. Segundo a Associação Brasileira da Indústria do Trigo (Abitrigo), o principal motivo foram medidas de restrição de tráfego em determinadas regiões do País, especialmente em alguns Estados do Nordeste, mas o cenário já teria “melhorado muito” nos últimos dias.

Culinária pode funcionar quase como meditação, diz psicóloga

Doutora em Psicologia pela Universidade de Brasília (UnB), Elisa Reifschneider explica que a culinária é um tipo de trabalho manual que pode ser benéfico para muitas pessoas, especialmente em momento de restrições, como o atual. “Guardadas as devidas proporções, pode-se pensar a cozinha como meditação, porque é uma forma de se conectar. É uma atividade que preenche vários dos mesmos requisitos, de prestar atenção naquele momento.”

Um dos aspectos que ela destaca é, também, o da criatividade para buscar receitas que contemplem os itens disponíveis em casa. “O processo de cozinhar é extremamente rico, especialmente no sensorial, com sabores, cheiros, texturas. Tem o contato da mão com a massa, a questão do sovar, de ver temperatura, quantidade.”

Ela explica que a experiência também pode ajudar a se desconectar das preocupações. “Na medida em que a pessoa foca naquilo que está fazendo, permite que ela saboreie, desfrute do momento enquanto acontece”, diz. “Também é possível cozinhar sem prestar muita atenção, mas um bolo, por exemplo, exige um pouco mais de atenção, tem de ficar em cima, às vezes a dose não é exata, tem de corrigir no gosto, na textura”, afirma Elisa.

“A gente está em uma situação bem diferente que ninguém passou antes. Por que não tentar fazer uso daquilo que está disponível? Todo mundo vai ter de cozinhar – e mais vezes -, isso pode ser um momento de aproveitar além da função de nutrir, mas para desacelerar, prestar atenção na variedade de estímulos, tirar gosto da atividade, de ter prazer com aquilo que dá orgulho de ter feito, que alimenta, que é bonito. Tem toda uma dimensão do afeto com a comida que, na nossa cultura, é muito forte.”

A psicóloga comenta, ainda, que o ato de compartilhar parte dessa experiência nas redes sociais também pode ser positivo, “a depender da forma com que se utiliza”. “Na hora que você tem um cuidado de montar, botar em um prato bonitinho, tenta montar de uma forma que fique esteticamente agradável, também é uma atividade muito similar (à culinária), de saborear o momento da feitura.”

“Também tem o benefício de que, na hora que posta, você está buscando uma conexão com outras pessoas. Tem gente que posta uma receita, tem ideias com outras pessoas, é uma forma de buscar esse pertencimento”, acrescenta.

Fonte: Estadão

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